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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

MARINHO CHAGAS

Texto adaptado de reportagem do site www.trip.com.br


“D-E-S-T-R-U-I-U tudo! Chiquinho, lateral esquerdo craque, craque, craque do Riachuelo, receba as nossas congratulações! É seu o troféu Motoradio de melhor jogador em campo, por unanimidade de votos!”, berrava Roberto Machado na cabine da rádio Nordeste AM, em Natal, no fim do empate de 1 a 1 entre o pequeno clube da periferia da capital potiguar e o ABC Futebol Clube. Era outubro de 1969. Quarenta e um anos depois, Francisco Chagas Marinho – o Marinho Chagas, nome que adotou desde aquela data e com o qual entrou para a história do futebol mundial – lembra de todas as frases do anúncio acima, impostando a voz e com o dedo em riste como se fosse o próprio locutor.

A situação atual de Marinho, vivendo de forma humilde e com problemas de saúde, em nada lembra o passado do “touro”, como o chamava o jornalista Franklin Machado, 66, à época comentarista e um dos votantes da eleição que premiava desde o começo dos anos 60 o craque das partidas de futebol profissional no Brasil com um rádio portátil movido a pilhas elétricas. “Marinho era indomável”, sentencia. O Motoradio foi um rito de passagem para o moleque de 17 anos, peladeiro dos campos da Salgadeira e Sete Bocas, periferia à beira do mangue em Natal. Presenteado à mãe quando chegou em casa, o rádio foi o primeiro dos 47 com que foi agraciado Marinho Chagas ao longo de sua carreira.




CHAPÉU EM PELÉ

“Vamos ter cuidado com o galego. Dizem que é craque. E doido”, alertou Pelé ao time do Santos em 1972, na partida contra o Botafogo no Maracanã, em que se anunciava a estreia de Marinho como titular, recém-chegado do Náutico de Recife-PE. “Quando vi Pelé em campo quase chorei.” Admiração, admiração, futebol à parte. No primeiro encontro dos dois “o doido” pôs o estádio abaixo com um chapéu que fez o rei perder o rumo. “No fim da partida ele veio até mim, apertou minha mão e disse: ‘Vê se me respeita, não vem com essa história de chapéu de novo, não, hein!’. Mandei ele tomar n.c. e saí rindo.”



Era o segundo desaforo em menos de uma hora. Pouco antes, com o Botafogo perdendo por um gol, Jairzinho preparou a bola na entrada da área para bater a falta. Deu seis passos para trás e, dois antes de chutar, viu a pelota entrar no ângulo da trave pelos pés de Marinho, que lhe roubou a cobrança.
“Ele ficou muito puto! ‘Porra, que merda é essa!’ Eu falei: ‘Bicho, vai tomar n.c., o gol tá feito!’.” Marinho garantiu o empate.




Até vestir a camisa do Botafogo, Marinho ziguezagueou do Riachuelo para o ABC e o Náutico. Dois fatos marcaram a passagem pelo clube pernambucano. No fim de uma série de amistosos no Caribe, surpreendeu-lhe a aclamação de um rastafári que cantou no intervalo de uma partida no estádio de Kingston, Jamaica. No vestiário, Marinho recebeu, além de um abraço, uma proposta de escambo de Bob Marley, o tal cantor: três discos em troca da camiseta que vestiu na partida. Não demorou a ser contratado pelo Botafogo, o "time destino" até os anos 70 (até 1974 mais precisamente), ou seja, era para cá que vinham várias das promessas que despontavem nos rincões do futebol brasileiro, juntando-se à prata da casa.

Marinho badalando no Rio, e com o poder político da época.

O Rio foi tanto a consagração quanto a perdição de Marinho Chagas. Ganhando dinheiro como nunca, fez jus ao alerta de Pelé aos colegas de elenco de que “o galego é doido”. Impulsivo e vaidoso, não refugava os entreveros. Já conhecido pelo apelido que se aferrou à imagem, Bruxa Loura, alimentava a fama de mulherengo nas areias de Copacabana, que frequentava paramentado com roupas coloridas, uma faixa no cabelo e colares, as portas do Karman Guia abertas, no banco ficavam as caixas de som de uma radiola Philips que tocava os discos anos antes presenteados por Bob Marley. “Chovia mulher.”

No gramado, Marinho permanecia incansável, como recorda João Moreira Salles, documentarista e botafoguense ilustre: “Eu era pequeno, então me lembro de um gigante com cabelos de viking que parecia ser uma força da natureza. Era meio improvável, um lateral esquerdo que era destro. Tinha uma garra que depois eu viria a chamar de argentina. Quando ele entrava em campo, a gente não tinha medo de ninguém. Podia até perder, mas nunca entregar”.

Ao mesmo tempo em que consolidava a posição hoje conhecida como ala esquerda, Marinho perdia pouco a pouco o controle sobre as finanças: “Gastei demais, demais...”. A metrossexualidade de Cristiano Ronaldo e o descontrole de Edmundo, o Animal, foram prenunciados por Marinho. Craque, habilidoso, revolucionário, mas emocionalmente instável. “Marinho foi um fenômeno como ala. Mas uma criança como profissional”, justifica o jornalista Juca Kfouri, entusiasta do jogador que, apesar dos percalços anunciados pelos excessos fora de campo, chegou à seleção brasileira em 1973 e seguiu até a Copa do Mundo do ano seguinte.

Um ano depois da Copa, transferido para o Fluminense, onde permaneceu até 1979, Marinho pôs a paciência do cartola Francisco Horta no limite. Foi dele a ideia de levar pandeiros, chocalhos e tam-tans para a concentração. Virou hábito. Não bastasse o barulho, na disputa do torneio Teresa Herrera, na Europa, em 1977, ia ao limite do bom senso nas cobranças de pênalti em que ensaiava o que hoje se chama “paradinha”. “Mas eu não parava. Eu girava na frente do goleiro, 360°. Quando eu chutava pra valer ele já estava no chão.” Do banco, Horta ameaçava prendê-lo no hotel se repetisse a malandragem. Ele a repetiu por três vezes durante a viagem. Marcou em todas elas.





ELE NÃO USA BLACK-TIE

No fim do campeonato no qual o Fluminense sagrou-se campeão vencendo em Corunha o Dukla Paha, o time carioca embarcou para mais dois amistosos na França. De Paris a Nice, Marinho viajou num Mercedes-Benz preto, conversível, com bancos de couro, alugado, para uma festa de gala em homenagem ao time carioca, dali a dois dias, num castelo da cidade litorânea francesa. “Foi a primeira vez que usei black tie. Coisa fina. Muito artista, empresário e político no castelo. Enchi a cara e parti para a guerra. No meio da festa me apontaram a mulher mais bonita da noite e, quando me disseram quem era ela, não pensei duas vezes. Cheguei dançando, com uma taça de champanhe na mão, dei uma encoxada, encostei o pau devagar, esperando que ela pulasse fora. Mas ela riu. E, quando ela riu, eu tremi na base. Era demais pra mim; não tinha cacife pra comer uma princesa, jamais.” A mulher em questão era Grace Kelly, então princesa de Mônaco. Horta confirma o relato.

Hoje, morando novamente em Natal, financeira e fisicamente derrotado, pai de 13 filhos, cinco dos quais em países onde jogou (Alemanha e EUA) e com quem pouco mantém contato, enfrentando o alcoolismo, o ex-ala esquerdo não guarda vestígios da beleza e da forma física que possuiu na juventude. Há anos comenta-se à boca miúda uma ajuda de custo enviada por Platini, da França, fruto da amizade estreitada no Cosmos. “Já aconteceu, mas não quero falar sobre isso”, Marinho desconversa para em seguida arrematar uma volta por cima: “A Copa de 2014 vai ser a minha ressurreição. Quero escrever minha biografia até lá”, diz, com um rasgo de confiança que quase lembra o touro, o doido que foi em campo.